MARCO MARRAFON
O produtor rural, como se sabe, é um importante agente no combate aos incêndios florestais, especialmente quando atinge sua propriedade. Ações como construção de aceiros, manejo de pastagens e atuação direta no combate ao fogo com tratores, demais máquinas e implementos são corriqueiras no dia-a-dia de quem vive da terra.
No entanto, o período crítico de queimadas vivido no Brasil em 2024, com fogo descontrolado em grandes porções territoriais públicas e privadas, fumaça e intensa poluição do ar por todo o Brasil, que gerou impactos ambientais significativos nos mais diversos biomas (em especial na Amazônia e no Pantanal) deflagrou importantes mudanças legislativas e regulatórias, como parte da reação do poder público para que essa situação não se repetisse.
Assim, além da tradicional responsabilização reativa e punitiva cível, administrativa e criminal prevista na Constituição e no Código Florestal, conhecida como tríplice responsabilização ambiental, houve uma mudança de foco normativo. Estabeleceu-se uma série de obrigações preventivas a incêndios por parte do produtor rural que, se não cumpridas, levarão à punição por omissão.
Essa nova conjuntura foi consolidada pela Lei nº 14.944, de 31 de julho de 2024, que instituiu a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (MIF). Sua proposta tem por objetivo reduzir os incêndios florestais e proteger a biodiversidade, estabelecendo uma nova forma de governança sobre o tema.
Para cumprir esse objetivo, essa lei criou o Comitê Nacional de Manejo Integrado do Fogo (COMIF), um órgão com poder para detalhar e regulamentar as diretrizes da política nacional sobre o tema no País. Assim, o Comitê tem permissão expressa para editar resoluções que regulem as ações de uso e de combate ao fogo, estabelecendo deveres e obrigações para a prevenção de incêndios. Tais regras, por sua natureza, alcançam a esfera de direitos e deveres dos particulares, especialmente dos proprietários de imóveis rurais.
Recentemente, o Comitê editou a Resolução COMIF nº 03/2025, publicada em 1º de setembro, a qual representa um importante marco regulatório ao definir um conjunto de exigências de ações preventivas escalonadas de acordo com o tamanho da propriedade. Os produtores rurais terão um prazo de dois anos, a contar da data de publicação da resolução, para se adequarem às novas regras.
As obrigações foram estruturadas com base na dimensão da propriedade, medida em módulos fiscais. Cabe destacar que, para todas elas, independente de seu tamanho, o uso do fogo, ainda que controlado, demanda autorização dos órgãos ambientais.
Para os pequenos imóveis, definidos como aqueles com até quatro módulos fiscais, a norma exige o cumprimento de medidas preventivas básicas. Dentre elas, os proprietários deverão garantir a participação em treinamentos sobre prevenção de incêndios, utilizar o fogo apenas com autorização prévia dos órgãos competentes e indicar um responsável pelas ações de prevenção na propriedade.
Além disso, para as áreas consideradas de alto risco (mesmo as pequenas), será também obrigatória a manutenção de aceiros, a posse de equipamentos básicos de combate ao fogo e o acesso a sistemas de alerta, justamente para coibir que os incêndios sejam escalados ao patamar de tragédia ambiental.
Já para os imóveis médios (entre 4 e 15 módulos fiscais), as exigências são maiores: além das medidas básicas, é necessário obter orientação técnica para a construção de aceiros e queimadas controladas, e manter uma quantidade mínima de equipamentos de combate a incêndio disponíveis na propriedade ou em local de fácil acesso.
Por fim, as grandes propriedades, com mais de 15 módulos fiscais, enfrentam as obrigações mais rigorosas. Além de cumprirem todas as determinações para as categorias menores, os proprietários serão obrigados a elaborar e implementar um Plano de Prevenção e Combate a Incêndios Florestais (PPCIF).
Esse plano deverá detalhar as estratégias e recursos da propriedade para a prevenção e o combate ao fogo, que incluem a elaboração de mapas de risco, a manutenção preventiva de máquinas e a disponibilidade de recursos robustos, como reservatórios de água e até o uso de aeronaves para combate a emergências.
É interessante a disposição da norma que regulamenta a possibilidade de que vizinhos compartilhem parte dos equipamentos, bem como a necessidade de que seja mantido diálogo entre as propriedades limítrofes, para que seja feito um estudo a respeito dos impactos sinérgicos da região.
A ausência ou a falha na implementação desses planos, de acordo com as exigências para cada categoria de imóvel, não é um mero descumprimento formal. Ela caracteriza a omissão do produtor, agora caracterizada como descumprimento dos deveres estipulados na Resolução, passando a ser punida.
É crucial afastar a ideia equivocada de que se pode aguardar o prazo de dois anos previsto na Resolução COMIF nº 03/2025 para agir. Esse prazo se refere à implementação de algumas medidas específicas, mas diversas outras obrigações, como as sanções por omissão e as multas agravadas, já estão em plena vigência desde 2024 e o início de 2025.
Em uma primeira análise, não há dúvidas que há um movimento maior oneração do produtor rural, impondo-lhes responsabilidades desproporcionais em face da multiplicidade de riscos envolvidos e dos motivos que podem levar a incêndios (p. ex: ação criminosa, fenômenos climáticos, falta de fiscalização adequada e adoção de medidas preventivas pelos agentes públicos). Também é preciso cuidar para que o COMIF não extrapole suas competências legais, violando legislação hierarquicamente superior e até mesmo determinações constitucionais.
De qualquer modo, a nova realidade exige uma postura ativa e imediata. A proatividade para agir antes que o fogo comece, e a colaboração para unir forças com vizinhos em planos de manejo conjuntos, são medidas imprescindíveis para proteger seu patrimônio, reduzir os custos do manejo ambiental, e garantir a segurança jurídica dos empreendimentos rurais.
Em caso de incêndio, a omissão será um fator determinante na sua responsabilização, pois a legislação, como o Decreto nº 12.189/2024, agora prevê sanções não apenas para quem causa o fogo, mas também para quem falha em seu dever de prevenir. Ato contínuo, a Resolução COMIF nº 2, de 21 de março de 2025, reforça essa diretriz, listando uma série de ações que são de responsabilidade direta dos proprietários, como comunicar imediatamente as autoridades sobre focos de incêndio e viabilizar o treinamento de seus colaboradores.
Em conclusão, a mudança paradigmática é clara: O foco da legislação deslocou-se da reação para a prevenção. Se, ainda assim, a fase de responsabilização for atingida, seja por ação ou omissão, as sanções cíveis e administrativas são pesadas.
A legislação evoluiu e a responsabilidade agora não é apenas por "fazer", mas também por "deixar de fazer". Isso significa que a profissionalização da gestão ambiental e jurídica na propriedade rural deixou de ser uma opção para se tornar uma exigência legal inegociável.
Marco Marrafon é advogado atuante nas áreas de Direito Constitucional, Regulatório e Agroambiental; Professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ; Doutor e Mestre em Direito do Estado pela UFPR, com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre - Italia; Coordenador do Laboratório de Direito e Inteligência Artificial – LabDIA da FD/UERJ.