CHRISTIANY FONSECA
Chamam de pacificação. Mas o nome mais adequado seria permissão. Permissão para que a ruptura democrática se repita. Permissão para que a história seja reescrita à conveniência dos algozes. A proposta de uma nova anistia, personificada hoje na chamada PL da Anistia, não é um gesto de conciliação, mas uma licença antecipada para que se tente, outra vez, subverter a ordem democrática sem consequências.
Há quem tente colar a ideia de que a atual PL da Anistia teria o mesmo valor simbólico e histórico da Lei nº 6.683/1979, sancionada ainda durante a ditadura militar. Mas há uma diferença abissal entre os contextos, os agentes e os objetivos de cada uma. Em 1979, a anistia foi resultado de uma intensa mobilização nacional que exigia a reparação de injustiças cometidas pelo regime autoritário. O Brasil pedia o retorno dos exilados, a liberdade dos presos políticos, o reencontro com seus desaparecidos. Lutava-se contra um Estado que institucionalizou a tortura, a censura e o medo.
E mesmo ali, em plena ditadura, a anistia foi incompleta. Um pacto silencioso garantiu que os próprios agentes da repressão fossem incluídos no perdão. Torturadores e mandantes de crimes de Estado, que deveriam ter sido levados a julgamento, saíram pela porta da frente. Foi uma distorção histórica, que impediu o Brasil de punir seus carrascos e permitiu que a cultura da impunidade militar continuasse viva na caserna, nas polícias e no imaginário autoritário de parte da elite política.
Reeditar essa lógica hoje, invertendo inclusive os papéis, ao tentar anistiar quem atentou contra o Estado de Direito, seria repetir o erro com ainda mais cinismo. Se em 1979 o país buscava reencontrar a democracia, hoje é a própria democracia que está sendo ameaçada.
Os eventos de 8 de janeiro de 2023 não foram um raio em céu azul. Foram o ápice de uma cadeia coordenada de ataques ao processo democrático, ao sistema eleitoral e à soberania do voto popular. A tentativa de golpe não se resumiu à invasão de prédios públicos, ela começou bem antes, com milícias digitais, pressões militares, tentativas de desacreditar o TSE, movimentos articulados pedindo intervenção militar e até atentado contra a vida. O que vimos naquele domingo em Brasília foi a cena final de um roteiro golpista que só não teve sucesso por resistência institucional. E sorte histórica.
Ainda assim, foi golpe. Ou melhor: foi tentativa de golpe. E isso não é opinião. Está registrado nos autos, reconhecido por decisões do STF e, agora, até verbalizado publicamente pelo presidente do partido que abrigou o ex-presidente da República. Valdemar da Costa Neto declarou em cadeia nacional que houve sim uma tentativa de golpe. O que não houve foi a sua consumação. E se não houve, foi porque as instituições reagiram a tempo. Foi porque a democracia resistiu.
Num Estado autoritário, o problema está no sistema. Num Estado democrático, o problema está na recusa a aceitá-lo. E é exatamente essa recusa, essa negação do pacto democrático, que motivou a tentativa de golpe no Brasil. Não houve fraude nas urnas, nem dúvida no resultado. O que houve foi inconformismo político travestido de discurso patriótico. E esse inconformismo virou planejamento, virou financiamento, virou destruição, virou afronta ao próprio país.
É justamente porque vivemos uma democracia que ela pôde ser atacada. Numa possível intervenção militar, os golpistas sequer sairiam às ruas. Seriam os primeiros a serem calados.
Há quem diga que anistiar seria virar a página. Mas páginas mal viradas costumam manchar os capítulos seguintes. Foi assim em 1979, quando a anistia “ampla, geral e irrestrita” acobertou torturadores. Foi assim nos anos 90, quando o Brasil ignorou as recomendações internacionais de julgamento dos crimes da ditadura. E pode ser assim novamente, se permitirmos que a impunidade se torne política pública.
O Brasil precisa aprender com sua história, não a repetir por conveniência. A democracia é incompatível com a anistia a golpistas. E quem defende o perdão, em nome de uma paz artificial, está, na verdade, autorizando a próxima ruptura. Porque onde há certeza de impunidade, há permissão para o crime.
O apelo por anistia, hoje, não é gesto de conciliação. É ameaça de reincidência. É recado aos futuros golpistas de que haverá abrigo legal mesmo para quem destrói a Constituição.
Perdoar um ataque à democracia é escrever, desde já, o prefácio do próximo golpe. E quando ele vier, não digam que foi surpresa. O que se tolera hoje, se repete amanhã. E o amanhã pode não perdoar quem perdoou demais.
Christiany Fonseca é Cientista Política, Doutora em Sociologia (UFSCar) e Professora do Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT).