RICARDO BORGES MARTINS
Até anteontem acreditava-se que havia uma barreira intransponível entre a internet e o mundo real. Hashtags (#) eram ‘ondas’ e jamais seriam partículas. Eles não tinham peso e jamais poderiam incidir sobre o mundo real. Nunca se entendeu muito bem o que eram estes jogos da velha e, a bem da verdade, sequer suspeitaram que este simbolozinho pudesse trazer algo novo para a democracia.
Os hashtags surgiram, sem muita pretensão, como um meio de indexar assuntos a palavras-chave para facilitar a localização de discussões via mecanismos de pesquisa. Com o tempo, tornaram-se ferramentas sociais capazes de conectar pessoas com pelo menos um interesse em comum. Por meio de hashtags, as pessoas passam a ter maior possibilidade de controle sobre seus círculos sociais, são elas que decidem os seus recortes e conexões.
Nesse cenário de maior autonomia individual sobre a própria rede, a noção de minoria e maioria – que sempre teve papel fundamental nas teorias da opinião pública – perde peso. A célebre ideia de que minorias se calariam justamente por perceberem que são minorias começa a enfraquecer. Ela não deixa de existir, mas sua lógica é menos dominante. Uma nova configuração social surge para colocar em xeque a teoria de Noelle-Neuman: se existe uma espiral hoje, ela não é a espiral do silêncio, mas a espiral do ruído.
As pessoas encontram suporte para confirmar o que elas pensam e encontram audiência para dizer o que elas não diriam.
Ao contrário do previsto por muitos que pensam a democracia em rede, este aumento da capacidade de interação entre pessoas com interesses em comum não propiciou (pelo menos não até agora) o surgimento de uma sociedade fragmentada. No meio dos ruídos, o próprio mecanismo de rede se mostra capaz de encontrar sintonias. Ora ou outra escutam-se pontos transversais entre esses grupos, surgem consensos no encontro dessas micronarrativas.
A questão toda é que estes consensos são, em via de regra, amorfos. É difícil rastrear a sua origem, e mais ainda identificar os seus porquês. É aí que os processos maiores se iniciam, e o nosso entendimento emperra.
Em junho observamos, talvez pela primeira vez no Brasil, o nascimento deste fenômeno. As manifestações de rua - plurais, desorganizadas, sem causa, com excesso de causas, etc. - foram o resultado desse consenso mínimo em defesa do direito de manifestar. A intersecção entre todos os movimentos é o que tornou as manifestações a expressão de um sentimento público.
O ponto aqui é que em fase de transição o governo ainda é capaz de alterar as frequências. Havia uma presidente no meio da sintonia. A simples fala da presidente e a apresentação de propostas e metas e, sobretudo, a ênfase dada à reforma política deslocou a sintonia.
Ao contrário de muitos, concordo com a presidente que a insatisfação generalizada seja sintoma de uma crise de representação, crise cada vez mais aguda em virtude do fortalecimento da interatividade.
Estas ondas de conectividade não são meras perturbações se propagando no meio, estas ondas têm massa e devem ter peso no processo político. Acreditar na democracia como regime é acreditar no direito de que estes ruídos possam confluir; é acreditar que tais ruídos precisam de poder de incidência.
Queiram ou não, estamos em um processo de transição para uma nova democracia, cujos contornos - embora não muito definidos - apontam para um sistema político muito mais interativo. O que incomoda a muitos, no entanto, é perceber que esta transição não se dará por rupturas. Teremos que consertar a bicicleta enquanto pedalamos, isto é, a democracia representativa não deixará de existir: ela terá que passar por adaptações que respondam melhor as ondas de alta interatividade e a novas formas de organização. Isto requer sim uma reforma política - e já requer faz tempo.
Mas democracia dá trabalho. Se quiserem levar adiante a Reforma Política de forma inclusiva e participativa, de maneira que todos possuam acesso de qualidade às informações e participem de um debate qualificado, não se pode fazer isso às pressas.
É verdade que a população gostaria de ver mudanças o quanto antes e se possível já valendo para as eleições do ano que vem, mas é preciso ter em mente a variedade e complexidade dos assuntos, lembrando sempre que o principal obstáculo à reforma política tem sido justamente a pluralidade de questões que tentam aprovar em um mesmo pacote.
Enfim, para que os ruídos encontrem sintonia e capacidade de influir, é preciso de tempo. Caso contrário, poderemos mudar apenas para que as coisas permaneçam como sempre foram.
RICARDO BORGES MARTINS é formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), com foco em Cultura Política e Tendências Democráticas. Com especialização em Argumentação e Influência Social pela Université d’Aix-Marseille (França), é um dos organizadores do Movimento #EuVotoDistrital.