SORAYA MEDEIROS
Acordo com o celular vibrando na mesa de cabeceira. Antes mesmo de os olhos se acostumarem com a luz, a mão já percorre o caminho automático até o ícone familiar. Um desfile interminável de sorrisos perfeitos, corpos dourados pelo sol, pratos coloridos em restaurantes chiques, passaportes carimbados. Pessoas em eterna celebração. Parecem não ter contas para pagar, dias cinzentos, nem rugas na alma.
Deslizo os dedos pela tela e uma sensação familiar começa a se instalar — um peso sutil sob o esterno. É a tristeza sorrateira que nasce da comparação. Enquanto eu luto com a minha xícara de café simples e a lista de tarefas do dia, eles estão conquistando o mundo, um post de cada vez. E eu aqui, com o que me sobra.
Essa sensação de não ter é uma velha conhecida da humanidade. Lembro-me, então, de uma história sobre Chico Xavier — o homem de Uberaba que falava com o mundo espiritual. Um amigo de São Paulo foi visitá-lo. Sentaram-se na sala modesta; o café era servido em canecas comuns, daquelas que esquentam as mãos e confortam a rotina.
O amigo, eufórico, desfiou um rosário de conquistas materiais. Apartamentos com vista para o mar, uma conta bancária que era quase um oceano, investimentos, carros, barcos, centenas de ternos de grife, sapatos que custavam mais que o mês inteiro de Chico. Ele ouvia, quieto, em sua casa simples, com suas roupas simples.
A visita foi embora, deixando para trás um rastro de vazio. As palavras do amigo ecoavam na mente do médium como acusações: “Você não tem nada”. A tristeza foi um convite irresistível, e Chico se viu caminhando em direção ao mar da melancolia, sentindo a água fria da depressão lamber seus pés. Ele não possuía riquezas, não tinha uma família convencional, nem netos para embalar.
Foi então que seu benfeitor espiritual, Emmanuel, apareceu. E após ouvir o lamento de Chico — a longa lista do que lhe faltava — respondeu com a doce lógica do essencial:
“Chico, você só tem um corpo. Veste uma roupa de cada vez. Para que centenas de ternos? Você não é uma centopeia para precisar de tantos sapatos”.
E quando Chico mencionou a solidão, a falta de uma esposa e filhos, a resposta foi ainda mais profunda. “Chico, você se casou. Casou-se comigo, com o compromisso de servir. E não pode dizer que não tem filhos. Os livros que escrevemos juntos são os nossos filhos. E as traduções desses livros? Esses são os nossos netos, espalhados pelo mundo”.
Chico saiu daquelas águas amargas. Percebeu que seu patrimônio não cabia em inventário, não precisava de seguros nem de chaves. Estava todo nos livros, no consolo que levara a milhões, no legado de amor que transcenderia sua existência terrena. Ele tinha, afinal, o suficiente — e era imensurável.
Penso nisso e o gesto é quase automático: baixo o celular. A tela escura reflete meu rosto, um pouco cansado, mas vivo. Olho ao redor. A xícara de café ainda está morna. Tenho um teto. Tenho roupas no armário — mais do que preciso, confesso. Tenho comida na geladeira. Tenho o abraço da minha mãe, a lealdade de alguns amigos, a memória de risadas que não cabem em nenhuma foto.
As redes sociais nos forçam a olhar para o buraco — não para a montanha que já construímos. O buraco é o que nos falta: a viagem não feita, o saldo bancário irreal. A montanha é cada dia vencido, cada pequeno projeto concluído, cada lágrima enxugada que nos fez mais fortes. Inverter o olhar é celebrar o que já está aqui.
Nos ensinam a cobiçar o próximo degrau, esquecendo que já subimos muitos outros. Talvez a felicidade não esteja na lista infinita de desejos atendidos, mas na capacidade de fechar os olhos e, no silêncio, reconhecer: já tenho o suficiente. O ar que entra e sai dos pulmões, o pão na mesa, o amor que não precisa de filtro para ser real.
A vida, em sua medida exata, não está no que nos falta, mas no que, graciosamente, já nos foi dado. E isso, hoje, me parece mais do que suficiente.
*Soraya Medeiros é jornalista.


















