JULIANA SÍCOLI
Vivemos em um tempo de conquistas importantes, mas também de cicatrizes que insistem em permanecer. Por trás das estatísticas e das políticas públicas, ainda reverbera o silêncio de tantas mulheres atravessadas por violências físicas, emocionais e simbólicas. Essas marcas não pertencem apenas à vida privada: elas atravessam a cultura, a memória, o inconsciente coletivo.
É justamente por isso que, neste período dos 21 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres, precisamos ampliar o debate para além do campo jurídico ou institucional. Há dimensões da experiência feminina que só se revelam quando somos capazes de sentir. E é nesse território que a arte atua com uma força singular.
A arte não é apenas expressão: é respiração, escuta, reorganização interna. É o espaço onde aquilo que foi calado encontra forma, onde o que parecia impossível de nomear finalmente se torna imagem, palavra, movimento.
Na minha trajetória como artista visual e pesquisadora de psicanálise e psicologia, percebo que criar é, muitas vezes, uma maneira de reaparecer no mundo. Quando uma mulher transforma sua experiência em gesto criativo, ela não apenas fala sobre si: ela se reinscreve. Passa do silêncio à presença, da invisibilidade à autoria.
Criar é existir de novo.
Se os documentos, relatórios e discursos dão conta da materialidade da violência, a arte alcança aquilo que não se diz diretamente. Ela revela nuances, abre fendas, convoca percepções.
A imagem pode denunciar, mas também pode acolher. Pode questionar estruturas e, ao mesmo tempo, abraçar o íntimo. A arte opera nesse limiar em que política e sensibilidade se encontram.
Ela não romantiza o sofrimento; ela o traduz. Ela não substitui o enfrentamento institucional; ela o expande, criando espaço para compreender o que a linguagem técnica não alcança.
Durante os 21 dias de ativismo, somos lembrados de que enfrentar a violência contra mulheres não é apenas construir mecanismos de proteção, mas também transformar a sensibilidade coletiva.
Para que a violência cesse, é preciso que primeiro seja vista. E para isso, é preciso que algum gesto toque quem observa. A arte tem esse poder raro de deslocar percepções, de fazer com que algo finalmente seja notado, sentido e elaborado.
A cada fotografia, texto, performance, pintura, bordado ou imagem, abre-se uma fresta por onde a sociedade pode, pouco a pouco, se transformar.
A arte não cura tudo, mas abre caminhos. Não dá respostas prontas, mas produz presença. E presença é, muitas vezes, o primeiro passo para que a violência deixe de ser destino.
Nestes 21 dias — e em todos os outros — acredito que cada gesto criativo carrega em si uma pequena possibilidade de mudança, de buscar um mundo onde nenhuma mulher precise sofrer calada. Um mundo em que criar seja, também, um ato de liberdade.
A autora é Juliana Sícoli, artista visual e pesquisadora de psicanálise e psicologia do feminino - [email protected]

























