PAULO LEMOS
A Ouvidoria Geral do Município de Cuiabá é um importante mecanismo de participação popular (exercício da cidadania), democratização da Administração Pública, defesa dos direitos dos usuários e aperfeiçoamento dos serviços prestados pelo Executivo da Capital/MT, como se verifica em sua finalidade e competência, previstas, respectivamente, nos artigos 2º e 3º da Lei Complementar nº 137/06 do Município de Cuiabá/MT.
Para cumprir sua missão, com autonomia do órgão e independência funcional, conforme preconizam os §§1º e 2º do artigo 1º da LC 137/06, o legislador municipal acertadamente condicionou a nomeação do titular da Ouvidoria, o Ouvidor, à prévia indicação de lista tríplice por entidades de classe da sociedade civil, mediante a seguinte redação do §3º do mesmo artigo e lei: “O Ouvidor Geral do Município gozará de autonomia e independência e será indicado em lista tríplice por entidades de classe da sociedade civil e nomeado pelo Prefeito para um mandato de dois anos, podendo ser reconduzido ao cargo por igual período, uma única vez.”
Esse modelo de Ouvidoria não se verifica única e exclusivamente no Município de Cuiabá/MT, bem como também não foi nele que surgiu o instituto da Ouvidoria Externa, como tem sido convencionado classificar as Ouvidorias autônomas e independentes, ocupadas por alguém oriundo de fora dos quadros da Instituição a qual ela estiver vinculada, indicado em lista tríplice formada pela sociedade civil, para exercício de mandato e cumprir função de controle social.
Na verdade, sua origem remonta até a Roma antiga, na figura do “Defensor da Plebe”; à experiência contemporânea dos países escandinavos, conhecida como “Ombudsman”; à figura do “Defensor del Pueblo”, na América Latina; desaguando nas ondas democratizantes das “Ouvidorias Externas” no Brasil, já em curso nas Defensorias Públicas, no SUS, nas Polícias etc.
Em todos os casos, ressalvadas algumas peculiaridades, os princípios e regras gerais observados são: “processo eleitoral precedido de ampla divulgação e garantia de igualdade e liberdade de participação da sociedade civil organizada local no pleito; investidura em mandato social, autônomo e independente; e atribuições suficientes para cumprir a função.”
Ocorre que, longe disso, o Prefeito de Cuiabá editou e publicou, aos dias 16 de julho do corrente ano, o Decreto nº 5.337/13, regulando o pleito da Ouvidoria Geral do Município de Cuiabá, de partida, mitigando tanto a igualdade quanto a livre participação da sociedade civil organizada, direcionando o direito de participar tão somente para algumas poucas entidades (10), entre outras, a Federação das Indústrias de Mato Grosso, a Federação do Comércio de Mato Grosso, a Câmara de Dirigentes Lojistas de Cuiabá e algumas autarquias atípicas (Conselhos Regionais de Engenharia e Agronomia, Contabilidade, Corretores de Imóveis, Economia e Administração).
Contudo, não foram elencadas no mencionado Decreto entidades que representam os trabalhadores, os estudantes, os consumidores, os comunitários, as minorias, os usuários dos serviços públicos etc. (como os sindicatos, federações e centrais de trabalhadores; a Associação Cuiabana e a Matogrossense dos Estudantes Secundaristas; o Instituto de Defesa do Consumidor; a Associação Cuiabana e a Federação Matogrossense das Associações de Bairro; as pastorais e comunidades eclesiásticas de base; a Associação dos Usuários de Transporte Público; etc). Não dando qualquer chance para elas participarem oficialmente no processo, como se a representação desses segmentos, que são a maioria da população e os mais carentes de serviços públicos, não compusessem o conjunto da cidadania.
Neste ponto, forçoso se faz perguntar: quais foram os critérios adotados pelo Prefeito para incluir ou excluir segmentos representativos da sociedade civil?
Bom, se levado em consideração a discriminação feita entre entidades patronais e de profissões liberais, incluídas, e entidades populares e sociais, excluídas, pode-se afirmar que os critérios eleitos não foram nada democráticos (poder do povo), e, sim, plutocráticos (poder econômico), ofendendo vários princípios da Administração Pública, todos exaltados no caput do artigo 37 da Constituição Federal, a exemplo do axioma da impessoalidade, ante o apartheid operado às escancaras da cidadania.
O correto seria publicar um Edital estipulando critérios objetivos para que todas as entidades da sociedade civil que os preenchessem pudessem reivindicar o direito de participar, independente da condição sócio-econômica, ou qualquer outra condição protegida pelo caput do artigo 5º da Constituição Federal, de seus representados e representantes.
Agora, se fosse para priorizar, que fosse dado mais espaço para as entidades populares e sociais, em sintonia com os objetivos da República Federativa do Brasil, talhados no artigo 3º da Constituição Federal, de diminuir as desigualdades sociais e erradicar a pobreza, em detrimento do aumento do fosso social ainda perseverante neste Brasil tão desigual.
Não fosse suficiente o indevido direcionamento inicial do processo, outro vício de legalidade, insuperável, consubstancia-se na infeliz ingerência e usurpação de competência promovida pelo Executivo Municipal sobre a prerrogativa do conjunto da cidadania na indicação da lista tríplice ao Prefeito, nos termos do texto legal supracitado.
Pois, diferente do texto da lei que assegura essa prerrogativa à sociedade civil, como visto no início deste texto, o malfadado Decreto instituiu uma Comissão Governamental apócrifa, composta por integrantes da Administração Municipal e ocupantes de cargos de confiança do Alcaide Municipal, para indicar a lista tríplice.
Como assim? O princípio da legalidade foi revogado do caput do artigo 37 da Constituição Federal?
Não! No caso em debate, como se verá abaixo, extreme de dúvidas, ele foi vilipendiado.
A LC 137/06 diz expressamente no §3º do artigo 1° que a sociedade civil é quem deve indicar a lista tríplice ao Prefeito, e não uma “Comissão Governamental” alienígena ao texto legal.
Ora, quando o artigo 94 da Constituição Federal dispõe que a quinta parte dos tribunais será preenchida por membros do Ministério Público e advogados “indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes”, não há dúvida alguma acerca da prerrogativa, no caso da advocacia, por exemplo, da Ordem dos Advogados do Brasil formar e, após isso, indicar a lista sêxtupla.
Porquanto, se o §3º do artigo 1º da LC 137/06 diz expressamente caber à sociedade civil indicar lista tríplice ao Prefeito, não há argumentação retórica, interpretação delirante ou contorcionismo legal, possíveis de afastar essa prerrogativa da sociedade civil.
A Ouvidoria Geral do Município de Cuiabá não pode ser confundida com mais um cargo de confiança do Prefeito, de livre nomeação e exoneração, passível de acomodar aliados políticos.
Definitivamente, de acordo com a LC 137/06 e a vontade da cidadania livremente organizada, não é!
Portanto, não há alternativa senão anular o último processo de escolha da Ouvidoria Geral do Município de Cuiabá e realizá-lo novamente.
Entretanto, dessa vez, sem contrariar a lei e os fundamentos republicanos da cidadania e soberania popular, por uma Ouvidoria Geral da cidadania, transformadora da realidade social. E não uma Ouvidoria Geral do estabelechiment mantenedor do status quo de déficit democrático.
O patrimonialismo (confusão entre o público e o privado) e o coronelismo (autoritarismo), amiúde impostos à sociedade brasileira ao custo de sangue e ranger de dentes dos oprimidos e excluídos, não podem e não devem mais imperar na Administração Pública.
A sociedade brasileira clama pela quebra desses paradigmas obsoletos e pouco comprometidos com o interesse público primário da população. Ela não suporta mais a omissão do Estado, a precariedade dos serviços públicos, a corrupção clássica e de prioridades e a interdição de seu direito fundamental de ser parte na res pública e ser protagonista de sua própria história e de toda pólis.
Como diz o Professor Boaventura de Souza Santos: “Sem a efetividade dos direitos da cidadania, a democracia não passa de uma ditadura mal disfarçada.”
Será que depois do levante de junho, da antecipada primavera brasileira de 2013, ainda há quem não tenha entendido isso, mesmo estando tão claro como as luzes do sol?
Se com tudo que vem ocorrendo Brasil afora, há ainda quem faça ouvidos moucos para os gritos roucos das ruas, provavelmente, continuariam irredutíveis em suas convicções mesmo que os mártires da humanidade ressuscitassem e tentassem esclarecê-los e dar-lhes entendimento.
É tempo de mudar! É tempo de nascer de novo! É tempo de defender e fazer prevalecer efetivamente os fundamentos da cidadania e da dignidade do povo!
Paulo Lemos é Ouvidor-Geral da Defensoria Pública do Estado de Mato Grosso, Presidente do Colégio de Ouvidorias das Defensorias Públicas do Brasil e advogado especialista em Direito Eleitoral.
PAULO LEMOS é advogado em Cuiabá