CELLY SILVA
DA REDAÇÃO
Desde 2010, o Brasil tem sido o refúgio de mais de 70 mil haitianos que para cá vieram em busca de uma nova vida. Assim como os africanos que aqui chegaram há mais de três séculos, eles também se mudaram em circunstâncias adversas e ainda lutam para se ver livres e afirmar sua cultura e seu valor enquanto cidadãos.
Duckson e outros compatriotas criaram a Organização de Suporte das Atividades dos Haitianos no Brasil (OSAHB), que sob os pilares da ação, união e comunicação, tentam se integrar à comunidade brasileira mostrando sua cultura e também servindo como um aconchego aos “irmãos”
Dos mais de 70 mil haitianos em solo brasileiro, cerca de 5 mil vivem em Mato Grosso, sendo a grande maioria em Cuiabá. Um deles é Duckson Jaques, 32, que está no Brasil há quase três anos. Ele é solteiro e deixou mãe e irmãos no Haiti. Aqui ele está tendo a oportunidade de recomeçar a vida. Trabalha em uma loja de decoração durante o dia e estuda á noite. O haitiano está no 2º ano do ensino médio, se preparando para entrar no curso de Saúde Coletiva da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Duckson tem um objetivo bem definido enquanto imigrante. Ele diz que se em cinco anos não conseguir atingir seus objetivos, irá avaliar se continua ou não no Brasil, mas seu interesse é continuar aqui e voltar para o Haiti apenas para ajudar a família.
Ekesio Cruz

Duckson Jaques vive no Brasil há quase três anos.
Há dois anos e meio, Duckson e outros compatriotas criaram a Organização de Suporte das Atividades dos Haitianos no Brasil (OSAHB), que sob os pilares da ação, união e comunicação, tentam se integrar à comunidade brasileira mostrando sua cultura e também servindo como um aconchego aos “irmãos” que precisam de ajuda para reconstruir a vida longe de casa. “Não só os brasileiros que tem que ajudar, nós também temos que fazer nossa parte”, afirma Duckson ao explicar que as entidades beneficentes como Casa do Imigrante e Pastoral do Migrante oferecem auxílio no acolhimento aos estrangeiros, mas não suficientes para suprir todas as demandas dessa comunidade.
Ao assumirem o protagonismo de sua trajetória em Cuiabá, através da OSAHB, os haitianos conseguem fortalecer os laços de solidariedade e patriotismo que os une. Além de questões burocráticas relacionadas a trabalho e educação, eles conseguem manter viva a cultura de seu país. “O critério da organização é para preservar nossa cultura Eles [os haitianos] tem que saber a cultura do Brasil e a cultura do Haiti também não pode ficar escondida. Se existem cinco mil haitianos aqui é invisível, ninguém sabe nosso talento, o que podemos fazer, qual é a nossa qualificação. Então, nós vamos ter uma forma de apresentar, esclarecer”, explica Duckson.
O estrangeiro explica que a OSAHB conta com uma parceria junto à Secretaria de Estado de Educação (Seduc) para fomentar a “educação migratória”. Primeiramente, eles fazem uma prova para avaliar o nível da língua portuguesa. Se aprovados, são matriculados em uma turma regular junto com brasileiros. Aqueles que ainda necessitam de maior aptidão com o idioma, passam um período em aulas somente de português, para posteriormente serem encaminhados às turmas regulares. As aulas de português também são oferecidas pelo Instituto de Linguagens da UFMT.
“Nós deixamos nosso país com um sonho bem determinado. Estamos precisando de um resultado e se não der certo, não tem como ficar num lugar que não tem resultado", diz o haitiano Duckson.
A própria Universidade Federal tem sido uma parceira dos imigrantes haitianos, promovendo estudos e eventos que valorizem a cultura de matriz africana e negra. Nesta sexta-feira (20), dia da Consciência Negra, os haitianos apresentam sua cultura no evento em comemoração à data que relembra a morte de Zumbi dos Palmares, líder negro que lutou pela liberdade do povo escravizado. Os haitianos demonstrarão todo seu orgulho por ser o primeiro povo negro a se libertar na história, com a apresentação musical “Humor da Liberdade”. O evento ocorre durante toda a tarde e vai até às 22 horas desta sexta-feira, na praça do Restaurante Universitário da UFMT.
"A ideia de fazer o filme partiu da necessidade que sentimos de mostrar além dos problemas enfrentados pelos imigrantes haitianos, pois a forma que a mídia abordava a temática era, de certa maneira, negativa", diz o cineasta Ekésio Cruz
Nessa aproximação com pessoas da academia, os haitianos foram tema até mesmo do documentário “Haiti – fierté des négres”, ou “Haiti – orgulho dos negros”, dirigido por Ekesio Cruz. O filme, que recebeu menção honrosa pelo olhar inclusivo de outros povos na 14ª Mostra de Audiovisual Universitário da América Latina, mostra um pouco da alegria e da cultura dos haitianos. De acordo com o diretor “a ideia de fazer o filme partiu da necessidade que sentimos de mostrar além dos problemas enfrentados pelos imigrantes haitianos, pois a forma que a mídia abordava a temática era, de certa maneira, negativa para eles, mesmo sendo com boa intenção de mostrar a realidade em que vivem”, afirma.
Ekesio Cruz

Cartaz do documentário que retrata o estilo de vida dos haitianos em Cuiabá.
Para o padre Jian Genestéi, da Pastoral do Migrante, há certo receio da parte deles em aparecer na mídia, pois acaba dando a impressão de que estão invadindo o país e tomando oportunidades dos brasileiros, criando um certo nível de xenofobia em alguns brasileiros com relação a esses imigrantes. O padre compara que há muito mais bolivianos, peruanos e pessoas de outras nacionalidades vivendo no Brasil do que os haitianos, mas devido à grande repercussão dos últimos anos, as atenções se voltaram para os haitianos.
De acordo com a OSAHB, é muito forte o interesse dos haitianos em estudar no Brasil e conseguir melhores empregos. “Nós deixamos nosso país com um sonho bem determinado. Estamos precisando de um resultado e se não der certo, não tem como ficar num lugar que não tem resultado. A gente sabe que não vai ser fácil, mas vamos tentando porque sabemos que a educação é uma chave bem grande, que abre muitas portas”, enfatiza Duckson.
A preocupação com estudo e emprego é grande, ainda mais em tempos de crise e após o fim das obras da Copa. Atualmente, cerca de 30% dos haitianos estão desempregados em Mato Grosso e mais da metade deles vive com no máximo dois salários mínimos, de acordo com pesquisa divulgada recentemente pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Atualmente, cerca de 30% dos haitianos estão desempregados em Mato Grosso e mais da metade deles vive com no máximo dois salários mínimos, de acordo com pesquisa divulgada recentemente pelo IPEA.
Por isso, é comum várias famílias dividirem a mesma moradia na intenção de conter gastos. Boa parte deles vive em bairros de periferia, como o Jardim Eldorado, onde funciona a OSAHB. Eles se reúnem todas as tardes de domingo, no centro comunitário do bairro para fazer orientações aos recém-chegados e discutir temas de interesse da comunidade.
Mas a maioria dos haitianos em Cuiabá tem na Pastoral do Migrante um ponto de referência. De acordo com o padre Jian Genestéi, responsável por esse trabalho, a casa procura acolher e ajudar na enculturação, no idioma, na documentação, no trabalho e educação. Mesmo passados cinco anos desde que um terremoto devastou o Haiti, a embaixada do Brasil naquele país emite cerca de 500 vistos humanitários por semana, sendo que cerca de 30 são atendidos pela Pastoral todo mês.
RepórterMT

Padre Jian Genestéi, da Pastoral do Migrante
Muitos dos que chegam em Cuiabá vão para outras cidades do Sul e Sudeste, mas a maioria dos que chegam a capital mato-grossense, prefere ficar por contar com mais suporte. Mais de 60% deles consegue a documentação em menos de um mês. Além disso, a Pastoral do Migrante oferece alojamento por um período que varia entre duas semanas a três meses, até que encontrem trabalho e moradia, explica o padre Jian. A própria pesquisa do IPEA cita o trabalho da Pastoral e confirma que em Cuiabá, verificou-se uma boa integração entre os imigrantes e a comunidade local.
Ainda de acordo com a pesquisa, as maiores dificuldades encontradas pelos haitianos para se integrar à sociedade brasileira estão relacionadas ao idioma, a emprego e moradia. A metade relata que não conseguiu ter acesso a serviços públicos como saúde e educação e 20% já sofreu violação de direitos trabalhistas, como exploração. Apesar disso, mais de 70% dos haitianos relatam que não sofreram discriminação no atendimento de serviços públicos.
A metade relata que não conseguiu ter acesso a serviços públicos como saúde e educação e 20% já sofreu violação de direitos trabalhistas, como exploração. Apesar disso, mais de 70% dos haitianos relatam que não sofreram discriminação no atendimento de serviços públicos.
Em relação ao preconceito, o padre Jian, que é haitiano e vive no Brasil há 11 anos, afirma que eles sofrem preconceito como todos os outros negros brasileiros, não só pela cor, mas também pela classe social, porém, de forma velada. “Existe preconceito, de uma forma discreta, mas existe”, afirma. Para Duckson, o que acontece é falta de conhecimento por parte dos brasileiros, que acabam ficando assustados com a presença de desconhecidos. “Não sabiam quem somos, as pessoas estavam muito preocupadas, mas eles tinham razão porque as pessoas não conheciam o Haiti, nem sabiam onde ficava, achavam que ficava na África. Mas eu não me senti maltratado. Agora já conversam com nós, estão começando a conhecer. Eu me sinto bem atendido”, relata.
Com a autorização do Ministério da Justiça para que mais de 40 mil haitianos permaneçam no Brasil, muitos estão contentes, mas alguns ainda querem voltar para o Haiti, principalmente por causa das famílias que lá ficaram e que não têm condições de trazer para viver em nosso país, ainda mais com a alta do dólar. Um dado importante, que contribuiu para que o governo aceite essa população permanentemente, é que o índice de criminalidade entre os haitianos é zero. Em Cuiabá, a Pastoral do Migrante acompanha junto a Polícia se há algum registro com relação a crimes e drogas e, até agora, nenhum caso foi registrado. Em Cuiabá, quase 1.5 mil conseguiram o visto permanente. “É uma questão ambígua. Muitos vão conseguir se fixar, outros vão acabar voltando pra terra natal”, avalia o padre.