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Cuiabá, 27 de Novembro de 2025
27 de Novembro de 2025

27 de Novembro de 2025, 14h:12 - A | A

OPINIÃO / RUI PERDIGÃO

Incompreensível estranheza do ser

RUI PERDIGÃO



Vividos que estão dois terços da minha vida em cima de três placas tectônicas continentais diferentes, engajado na guerra-fria, combatendo a globalização e enfrentando o digital, encontro-me agora confrontado com algo bem mais difícil de interpretar. Muito do que está a acontecer desperta em mim um misto de curiosidade e inquietação em saber se estamos mergulhados num processo revolucionário ou se diante de uma sinistralidade civilizatória. Normalmente o processo revolucionário inicia-se por via de acontecimentos socioculturais de cariz coletivo, decorrentes de insatisfação face a negligência política que, menos conservadora ou mais reformista, acaba por causar ruptura com o paradigma. Mas muito sinceramente não me parece ser o que está a ocorrer neste momento, uma vez que aspectos hierárquicos e de objetivo não estão sendo postos em causa, nem mesmo a estruturação governamental, econômico e religiosa está sendo atingida. Já no caso da sinistralidade humana, não sejamos ingênuos, muito provavelmente estaremos perante aquilo que recorrente e historicamente só tem levado pessoas para a fogueira, ou seja, mantem-se em mim a preocupante previsibilidade de que, cedo ou tarde, voltar-se-ão a acender fogueiras. Mas, e a interferência genética que fazemos na biologia evolutiva, e os resultados obtidos com os avanços na física quântica, a robotização versus uberização, assim como os emergentes inúteis produtivos que estão a materializar-se a uma velocidade para a qual não estamos minimamente habilitados a responder apropriadamente? Qual é o impacto de tudo isso em nós, é um questionamento que precisarmos fazer, reconhecendo que talvez ninguém saiba responder a isso, a não ser que possivelmente estamos somente a fugir para a frente, onde chegaremos ainda mais dependentes, a troco de liberdade pessoal.

Nas limitações da minha insignificância, olho o entorno e vejo crescerem dificuldades de interação com o normal desassossego das relações. O ajuste, a consideração e a clareza das relações não mais se desenvolve de modo linear e progressivo, e a ética, a evolução e o amor, parece não mais fazer parte da equação existencial que ainda não conseguimos resolver. Mas não vamos desesperar no vazio. Ainda podemos iniciar um processo adaptativo que, não sendo mais para nós, será para aqueles para quem construímos este mundinho e a quem dizemos amar. A passagem de testemunho aos descendentes é para mim a obrigação mais extrema e séria que temos de realizar em vida. Há noite, quando me deito, penso um pouco sobre o que comunicar no dia seguinte e como o vocabulário poderá contribuir para modificar práticas e refinar posições. Fico sonhando quanto benéfico seria expressarmos melhor a palavra sim, usando-a de forma mais afirmativa, num inequívoco compromisso com o que defendemos ou desejamos e não mais como um simples efeito sonoro de um largo sorriso. Ou quanto oportuno seria fazermos um maior uso da palavra não, passando a expressar ela como uma imposição ao debate entre diferentes e não mais como um freio acionado a fundo pelo receio. E quando penso como passar das palavras aos atos, fico imaginando também quanto benéfico seria parar de vez com a negação que se tem em repassar conhecimento ao próximo. Parar com essa posição esdrúxula de querer ser o melhor entre os piores. Eu, particularmente, sinto-me mais realizado quando sou o pior entre os melhores, pois nesses momentos estou com Isaac Newton, Ludwig van Beethoven, Pablo Picasso, Nelson Mandela e tantos outros, que não humanoides inconsequentes, insípidos e fúteis.

Desprovidos dos devidos fundamentos e contextos, fica muito mais difícil pensar e respirar na insalubridade intelectual a que se está exposto. Só me recuso em abandonar o testemunho que carrego comigo, no qual a democracia se inscreve como um sistema capaz de eleger execráveis excrescências, eu sei, mas que tem nele gravado os direitos fundamentais da dignidade da pessoa humana como principal desígnio, presente e futuro. Com a perspectiva de escala e a expectativa das relações que aprimorei aqui no Brasil, permito-me agora mencionar um fato. O planeta é composto por 71% de oceanos e 29% de continentes. A superfície sólida tem 16% de desertos e terras geladas, mais 7% de florestas. Pouco mais de oito bilhões e duzentos milhões de pessoas estão agrupados em 6% do território. O ambiente está tensionado e perder a palavra compromete a consciência.

 

 

 

Rui Perdigão – Escreve sem Acordo Ortográfico e sem Inteligência Artificial.

Administrador, geógrafo, presidente da Associação Cultural Portugueses de Mato Grosso

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