METRÓPOLES
Vestidos com hábitos em estilo medieval, correntes na cintura e botas de cavalaria, homens e mulheres apresentam movimentos minuciosamente ensaiados, semelhantes aos executados por militares. Constroem basílicas e moram em palácios que lembram castelos europeus. Eles seguem à risca um manual de costumes, estudos, orações. Devem manter, também, disciplina de pensamento. São os Arautos do Evangelho, comunidade de pouco mais de 3 mil pessoas no Brasil que nasceu com base em dogmas católicos e está submetida a uma rotina de princípios ultraconservadores. Esse grupo também abriga crianças e jovens que vivem em regime de internato.
Os Arautos do Evangelho constituem desde 2001 uma associação privada de padres de direito pontifício, ou seja, religiosos que ostentam um estatuto aprovado pelo Vaticano, reconhecidos, portanto, pela Igreja Católica. Em 2017, o grupo entrou na mira da Santa Sé e, desde o ano passado, o Ministério Público investiga as atividades dessa organização.
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Ao longo das últimas semanas, o Metrópoles esteve em quatro capitais que mantêm sedes dos Arautos. Visitou castelos, entrevistou ex-integrantes e familiares ligados aos devotos. A reportagem também teve acesso a uma representação protocolada junto ao Ministério Público de São Paulo (MPSP) que corre em segredo de Justiça. Os relatos são chocantes.
Há dois anos, vieram a público vídeos em que líderes religiosos dos Arautos do Evangelho supostamente praticavam exorcismo em menores de idade. As gravações mostram o momento em que os encarregados dos rituais davam tapas na cabeça de adolescentes e crianças. As cenas viralizaram. Mas a onda passou e os arautos voltaram ao anonimato, doutrinando jovens a partir de uma rotina que começou a ser questionada por pais e, agora, virou alvo das autoridades.
As imagens de 2017 são, na verdade, um frame de uma realidade oculta com sérios indícios de desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lei que resguarda os direitos dos menores.
Os depoimentos apontam que crianças a partir dos 7 anos podem estar sendo vítimas de alienação parental, lavagem cerebral, assédio sexual, estupro, violência física e psicológica, bullying, violação e controle de correspondência.
Os efeitos deste caldo de supostos crimes foram relatados em dezenas de testemunhos aos quais a reportagem teve acesso. Em geral, os jovens que deixaram de conviver com os arautos se queixam de trauma emocional e grande dificuldade de ressocialização, inclusive no ambiente escolar, já que há diferenças sensíveis entre a formação pedagógica curricular padrão e aquela que é oferecida dentro dos internatos.
Como as crianças vão parar nos castelos
Tudo começa com uma abordagem de representantes dos Arautos dos Evangelhos a pais e estudantes, geralmente recrutados em igrejas e escolas. Dentro dessa comunidade religiosa, os integrantes são treinados a apresentar um projeto social que inclui atividades pedagógicas e lúdicas, e a escolher um tipo determinado de perfil. Embora apresentem a proposta em turmas escolares sem fazer distinção, na hora da seleção – que, supostamente, se dá por sorteio – escolhem os estudantes que atendam aos pré-requisitos preferenciais da instituição religiosa. Geralmente, os indicados são crianças brancas de classe média ou baixa.
Uma vez selecionados, os jovens são convidados a participar de tarefas extracurriculares em uma das sedes do movimento, que são construções convencionais. Em Brasília, por exemplo, o espaço de recreação funciona na QI 25 do Lago Sul, bairro nobre da capital federal. Depois de quatro semanas frequentando assiduamente o lugar, alguns ganham bolsa para estudar na escola mantida pelos Arautos do Evangelho. No caso do Distrito Federal, a instituição de ensino fica nos fundos de um campo de futebol de grama sintética na 2ª Avenida do Núcleo Bandeirante.
Em dezembro de 2018, a escola conseguiu do Governo do Distrito Federal (GDF) autorização para funcionar. De acordo com o Diário Oficial do DF, o registro é “em caráter excepcional e a título precário”. O colégio recebe crianças do 1° ao 9° ano do Ensino Fundamental. A abordagem aos menores no Distrito Federal foi alvo de denúncia de pais à Secretaria de Educação do GDF. A pasta apura o caso.
Depois das etapas de recreação e do convívio escolar, já numa terceira fase, alguns dos estudantes que se adaptaram à vivência com os arautos são chamados a morar em um dos cinco castelos construídos pelo grupo religioso no Brasil. Desses, dois ficam na Serra da Cantareira, em São Paulo. Há ainda unidades em Ubatuba (SP), Embu das Artes (SP) e Maringá (PR). A última sede inaugurada pelos Arautos do Evangelho foi em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro.
Até a passagem para os internatos, os pais mantêm um contato próximo com os filhos e os instrutores. Participam dos eventos extracurriculares, reuniões, orações e recebem visitas dos religiosos em suas casas, em uma relação saudável, que cria uma sensação de confiança.
Os problemas começam a acontecer, segundo os relatos de pais e de ex-internos, quando é autorizada a ida aos castelos. Só na unidade masculina de Caieiras, na Serra da Cantareira, estão confinados 150 garotos. Há ainda a casa das meninas, chamada Monte Carmelo. As sedes ficam a quatro quilômetros uma da outra. Depois de reclusas, as crianças e os jovens passam a ter pouco ou nenhum contato com o mundo externo.
O que acontece dentro dos castelos
A vida dos religiosos dentro dos mosteiros é orientada pelos toques dos sinos. Há um horário determinado para acordar, fazer orações e dormir. Tudo está regido por um rigoroso manual de conduta chamado de Ordo – Usos e Costumes. Os que não seguem as normas à risca sofrem penalidades, como ficar horas de joelho ou dias em completo silêncio.
Atualizada com frequência, a publicação conta uma breve história dos Arautos do Evangelho e fornece instruções que vão desde como fazer o sinal da cruz na oração até o modo de dobrar um guardanapo, bem como as maneiras corretas de se alimentar e de se vestir. Todas as recomendações são acompanhadas de citações de João Scognamiglio Clá Dias, tratado na congregação por monsenhor. Aos 80 anos, recém-completados em 15 de agosto, o paulista é o líder máximo dos Arautos do Evangelho, entidade que, além do Brasil, tem células em 78 outros países.
Clá Dias bebeu na fonte de Plinio Corrêa de Oliveira, o fundador da Tradição, Família e Propriedade (TFP). Trata-se de uma organização civil católica conservadora criada em 1960. Sua característica política na época da ditadura era o anticomunismo (leia mais abaixo).
Ao soar dos sinos
Logo pela manhã, após o soar dos sinos, os internos recebem orientação para retirar a coberta com a mão direita ou esquerda (dependendo do lado em que a cama esteja). Na sequência, de joelhos, fazem a primeira oração diária.
Os arautos carregam um livreto chamado Preces, que reúne orações para serem lidas durante o dia. Têm instrução até para tomar banho e lavar as mãos. Primeiro, deve-se ensaboar a cabeça e o rosto. Depois, o pescoço e o tronco, seguindo para a parte da frente e, só então, as costas. Sempre iniciando pelo membro direito, depois o esquerdo. Os adeptos conferem hierarquias às partes do corpo.
Os órgãos sexuais são tabus. Nunca devem aparecer em conversas, nem mesmo no material pedagógico, segundo os relatos de ex-arautos. A todos é recomendado que não observem qualquer corpo nu, nem o próprio, muito menos os dos colegas. Televisões são proibidas, as músicas tocadas são apenas cantos religiosos e composições clássicas. Eles devem participar de ao menos uma missa diariamente.
As refeições são preparadas por empresas terceirizadas ou por arautos que atuam apenas para este fim, servir. Eles são chamados de intendentes. Não é permitido comer fora do horário nem nas dependências da copa e da cozinha.
Eventuais saídas dos templos também são sinalizadas por meio de toques dos sinos. Após o alerta, os jovens têm um tempo para entrar no carro – caso contrário, são deixados na sede. O comportamento adotado dentro do veículo é minuciosamente relatado no Ordo.
A regra é evitar distrações. Não se deve olhar pela janela. Por isso, recomenda-se sempre levar um livro com preces ou fotos. Ao descerem, os arautos precisam caminhar com a cabeça e os ombros erguidos, sem balançar os braços de forma exagerada, não falar alto e evitar chamar atenção “mexendo no cabelo ou dando risadas”.
Lavagem cerebral e a distância da família
As entrevistas de ex-internos e de seus familiares à reportagem e os depoimentos prestados ao Ministério Público guardam uma característica em comum: descrevem duas etapas muito distintas da experiência do convívio com os Arautos do Evangelho. Como no roteiro de um filme, a primeira fase lembra um conto de fadas. Tudo gira em torno de um ambiente de beleza e de harmonia. Crianças e jovens, muitos deles de origem humilde, encantam-se com a chance de morar em um castelo rodeado por jardins floridos, na companhia de colegas da mesma idade, comendo pizza e chocolate nas refeições. Usam uniformes medievais, têm acesso a instrumentos e praticam artes marciais. Parece um sonho.
O acesso a uma rotina que muitos pais não podem oferecer a seus filhos tem um preço que não é cobrado em dinheiro. Mas, depois de um tempo, torna-se um drama para muitas famílias que praticamente perdem o contato com seus filhos.
É quando a narrativa entra numa segunda etapa, desta vez com características de filme de terror. Em seus testemunhos, jovens contam que passam por uma “reprogramação” para se desapegarem de seus laços familiares. Os internos são orientados e encorajados a cortar o vínculo com os parentes. A eles é dito e repetido ostensivamente que seus verdadeiros pais são João Clá, o fundador do movimento, e Lucília Ribeiro dos Santos Corrêa de Oliveira. A mulher é a mãe de Plínio Corrêa de Oliveira, o homem que inaugurou a ordem Tradição Família e Propriedade, o principal pilar dos Arautos do Evangelho. Os irmãos são aqueles que dividem a vida nos castelos.
A transição é gradual, mas começa a ocorrer tão logo os jovens são levados ao internato. Com um dia a dia repleto de funções e atividades, sobra pouquíssimo tempo para o contato com familiares. Dentro dos castelos, os estudantes não podem usar telefones celulares. A única forma de se comunicarem é por meio de telefone fixo ou de visitas pessoais. Como o tempo é curto e são muitos os jovens, as ligações ocorrem poucas vezes por mês e se tornam cada vez mais raras.
Encantos e desencantos
Uma vida supostamente cercada de encantos atraiu L. S. para os Arautos. Hoje com 18 anos, ela conta que tinha apenas 10 quando passou a morar com o grupo. Sonhava em ser astronauta e desbravar as estrelas. “Minha vida mudou quando pessoas que moravam em castelos e vestiam roupas bonitas vieram até mim dizer que, entre milhões de pessoas no mundo, Nossa Senhora havia me escolhido para ser uma de suas filhas prediletas”, conta a jovem. Ela recebeu a reportagem do Metrópoles em sua casa, que fica em Taboão da Serra, na Região Metropolitana de São Paulo.
A jovem lembra que sempre foi fã de contos infantis, assistia aos desenhos da Disney, via novelas mexicanas infantis que apresentavam internatos como um lugar divertido, com a possibilidade de fazer vários amigos e de brincar. L. S. era amante dos livros e tinha o sonho de estudar em colégio particular. “Eles me prometeram um castelo, a melhor escola e uma biblioteca com chão e mesa de mármore, os livros eram de capa dura e letras douradas. Estava no conto de fadas em que sempre quis estar”, conta.
Ao longo dos anos, a convivência com as irmãs de hábito foi ficando cada vez mais difícil. Ela morou no castelo da Serra da Cantareira durante cinco anos. Distante da família, L. S. mudou seu comportamento. “A realidade foi bem cruel comigo. Perdi o que eu tinha de melhor, a minha alegria. Era sempre assim: ‘Correr na igreja é feio, não pode falar, senta reto, não coma a unha, não questione, não conte nada para sua mãe, não reclame, não pode brincar, seja adulta, adore o João Clá, beije a mão do padre, minta para o seu pai, não fale com o mendigo, não olhe para o lado, repita, não pense, senão você vai para o inferno’.”
A vida regida pelo Ordo (o manual de costumes e condutas dos Arautos do Evangelho) foi moldando L. S. de uma forma inesperada. Ela descreve que os horários eram preenchidos com muitas atividades. Diferentemente do que ocorria na primeira fase, fora do castelo, a rotina do internato não abria espaço para hobbies. A moça diz que as normas têm a função de “padronizar mentes e criar robôs”. A partir do momento em que começou a questionar o motivo de todas as regras, a jovem passou a ter problemas. E acabou submetida a duas sessões de exorcismo.
L. S. começou a ter problemas psicológicos e não conseguia mais falar. Diante do comportamento da jovem, os arautos decidiram enviá-la de volta para casa.
O processo de ressocialização não foi simples. Apesar de ter 15 anos à época, até atividades mais corriqueiras, como atravessar uma rua, eram um desafio diante de todo o tempo de isolamento. A família, então, decidiu sair de São Paulo e ir para o interior do Nordeste, até que a filha pudesse voltar a se comunicar melhor com as pessoas e se readaptar.
Perto dos Arautos e longe dos pais
O quarto com paredes da cor lilás, os ursos de pelúcia em cima da cama, as pedras coloridas na estante e a coleção de conchinhas na cômoda apresentam um pouco da personalidade de B. P., a filha de 21 anos da contabilista N. P., de 49. A mãe relata que a jovem amava passear, ler, ir à praia. “Esbanjava alegria nessa época passada”, conta a mulher, que mora em um bairro de classe média no município de Osasco (SP).
A rotina da família, no entanto, mudou quando B. P., aos 11 anos, começou a frequentar as aulas no instituto dos Arautos do Evangelho em São Paulo. A mãe diz que, no início, a convivência com os religiosos era constante. Havia reuniões, orações e jantares com fartura. “Após seis meses frequentando o projeto Futuro e Vida, minha filha ganhou uma bolsa de estudos. Eu me lembro de chorar muito ao arrumar as coisinhas dela na mala”, recorda-se a contabilista.
Depois do primeiro ano de internato, a filha de N. P. iniciou as atividades também nos fins de semana e nas férias. As visitas aos pais se tornaram escassas. “Ela nos dizia que precisava se dedicar à vida religiosa, mas eu te pergunto: como é possível decidir ser freira aos 11 anos?”, questiona a mãe. Em 2010, a menina escreveu uma carta em que falava sobre sua vocação.
A jovem, que adorava maquiagens e histórias infantis, foi se transformando em uma pessoa mais fria e cheia de segredos. Os objetos de desejo de uma pré-adolescente foram, aos poucos, sendo estocados em caixas guardadas no quarto. “Ela não deixa de usar o hábito e as botas, mesmo quando está em casa conosco. Não conta o que acontece lá. Evita ir à missa ou fazer oração quando está com a gente. Esses comportamentos foram nos deixando preocupados sobre o que de fato ela está aprendendo nesse lugar”, desabafou.
Quando B. P. completou 18 anos, a mãe dela recebeu uma ligação da filha que a deixou sem reação. “Ela me disse que, maior de idade, a gente não iria mais interferir nas escolhas dela. Eu nunca parei para pensar nessa questão dos 18 anos porque nunca achei que com essa idade o pai perderia o direito sobre o filho. Sempre respeitei o caminho que ela escolheu seguir, mas definitivamente não estava disposta a abrir mão de tê-la por perto”, disse a mãe. Emocionada, afirmou ao Metrópoles que ainda espera pelo retorno da filha.
Em certa ocasião, as divergências familiares em torno dos Arautos do Evangelho virou caso de polícia. Durante uma visita que B. P. fez aos pais, a mãe aproveitou para ter uma conversa séria com a filha. Queria que a jovem se matriculasse em outra escola e deixasse o internato. “Ela foi para o banheiro e mandou uma mensagem para as irmãs, dizendo que estava presa dentro de casa. De repente, a Polícia Federal bateu na minha porta, e o agente disse que tinha um boletim de ocorrência por cárcere privado. Meu mundo desmoronou”, afirmou a mulher.
A família seguiu para a delegacia dentro da viatura. O delegado explicou que a jovem havia denunciado e prestado depoimento contra os pais, alegando que estava sendo obrigada a ficar em casa. O caso foi registrado e, posteriormente, arquivado. “Como uma pessoa religiosa faz isso com os próprios pais? Como uma instituição que se diz religiosa tem coragem de ligar para a polícia nessa situação? Por que não falaram para ela conversar comigo?”
As lembranças que a mãe prefere guardar da filha, hoje com 21 anos, são memórias da infância. Recorda-se da criança que se divertia procurando conchinhas na praia, que tinha como um dos acessórios preferidos uma bolsa branca e que gostava muito de ler e escrever. As memórias permanecem naquele mesmo quarto. As roupas de cama com temas infantis são trocadas semanalmente. As roupinhas de uma criança de 11 anos ainda enchem as gavetas.
Sonho de princesa
As roupas em estilo medieval e a possibilidade de viver em um castelo fizeram com que A. B., aos 7 anos, sonhasse fazer parte dos Arautos. Ela ficou encantada ao conhecer uma das integrantes da ordem durante visita ao Santuário de Aparecida, em São Paulo. Após frequentar as aulas, escreveu carta endereçada ao fundador, João Clá, pedindo uma bolsa na escola. “Fiquei lá entre 2015 e 2018. No começo era tudo novo, encantador. Eu sentia algo diferente, sentia que lá era o meu lugar”, contou a jovem, que ao lado da mãe – R. M., 41 anos – recebeu a reportagem na casa de uma vizinha em Osasco (SP).
Assim como nos demais casos relatados, houve a ruptura de convivência com a família. De acordo com a menina, hoje com 14 anos, quem mostrava apego e dependência em relação aos pais biológicos era alvo de críticas dentro da escola. A família era chamada de FMR – Fonte da Minha Revolução. E quem quisesse seguir o caminho da santidade deveria evitar contato com os “revolucionários”, incluindo os próprios pais. A mãe conta que impediu a filha de receber o hábito. “Ela não tinha a menor condição de escolher virar freira naquela idade. Percebi que, durante as visitas, ela ficava distante, evitava ficar perto de mim. Sou nordestina, e a nossa família sempre foi muito próxima. Gostamos de abraçar, beijar, eu a chamo de meu bebê até hoje. Não queria que essa relação mudasse”, contou.
Em 2018, a relação desgastada entre a mãe de A. B. e os dirigentes dos Arautos acabou por resultar no retorno da adolescente para a família. “Hoje, eu tenho uma vida normal, fiz amigos e descobri quem eu sou, não era nada daquilo que um dia me fizeram acreditar”, disse a jovem.
Um dos casos mais dramáticos passados dentro de um dos castelos que reúnem os Arautos do Evangelho ocorreu há três anos. Uma jovem foi encontrada morta depois de cair da janela de seus aposentos. A polícia trabalha com a hipótese de suicídio, a família da moça não aceita a versão, e os arautos tratam o episódio como um ato de santidade. Desde o incidente, a estudante é venerada na comunidade como santa. Há pingentes e relíquias com o rosto dela.
Pela primeira vez desde a morte trágica da filha, a mãe dela falou sobre o assunto em depoimento à jornalista do Metrópoles Nelza Cristina.
O relato doloroso aborda três anos de saudade e expõe perguntas que ainda estão sem resposta. A enfermeira paraibana Zélia Salvador de Assis, 62, não aceita até hoje as explicações para a morte da filha, Lívia Natsue Salvador Uchida, então com 26 anos, em uma das edificações na sede da associação Arautos do Evangelho na Serra da Cantareira (SP), ocorrida em 27 de julho de 2016. No dia 5 de setembro, a jovem completaria 27 anos.
A explicação dada à época é que Lívia teria caído da janela de seu dormitório, no quarto andar, enquanto fazia uma faxina no local. A mãe não acredita nessa versão. Assim que chegou a São Paulo, após receber a notícia, esteve no recinto.
Aos poucos, ela foi reunindo informações que só reforçaram a suspeita de que havia algo errado. A filha teria morrido pela manhã, mas o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) só foi chamado por volta de 12h30 e a polícia, acionada às 17h. As botas da jovem foram retiradas sem qualquer explicação. Zélia afirma que nunca teve acesso aos registros das câmeras instaladas no local.
A morte de Lívia foi comunicada a um parente. Ao saber da notícia, mãe e filho, cerca de um ano e meio mais velho que a jovem, viajaram imediatamente para São Paulo. “Embarcamos de madrugada. Fui rezando para que aquilo não fosse verdade”, conta.
No local, segundo a mulher, um policial informou que tudo não passava de um acidente e que ela devia se conformar. Mas, depois, um delegado de Caieiras ponderou que muita coisa ainda deveria ser explicada sobre o caso. Foi quando Zélia resolveu reunir suas economias e contratar dois advogados.
A paraibana, porém, não teve sorte na iniciativa. Um dos advogados ficou apenas três meses, e o outro deixou o caso após um ano. A ocorrência acabou arquivada por indício de suicídio.
A mãe não desistiu e diz que ainda vai tentar reabrir o caso. “Aquela menina era tão doce e talentosa, pintava, cantava, tocava sax, isso não podia acabar assim. Era de uma meiguice sem igual”, relata a mãe, saudosa.
Sobre a santificação da moça pelos Arautos do Evangelho, a enfermeira desconfia que a atitude foi no sentido de mascarar as causas da morte. “Acho que eles fizeram isso para tentar encobrir alguma coisa”, diz a mãe.
Dilacerada com a dor da perda de uma filha, Zélia ainda teve de ouvir versões fantasiosas para a tragédia. Em uma delas, a moça teria se jogado atendendo um pedido de Jesus.
Quando esteve em São Paulo para a missa de um ano da morte de Lívia, Zélia ficou espantada ao ver que todos parabenizavam ela e o ex-marido por serem “pais de uma santa”. “Eu fiquei espantada, sem saber como reagir. Quando dizia que preferia minha filha viva, eles afirmavam que isso era uma blasfêmia, que eu deveria ficar feliz em ter uma filha santa”, conta.
Na sala de seu apartamento, em João Pessoa (PB), Zélia relata os acontecimentos. No local, ela mantém um quadro com uma imagem de Jesus, muitas plantas, fotos e algumas mensagens positivas nas paredes. Questionada se perdeu a fé, ela diz que não, mas afirma não seguir qualquer religião.
Em meio a fotos de Lívia espalhadas pela mesa, Zélia lembra que a jovem foi levada para os Arautos do Evangelho por iniciativa do pai, um dentista filho de japoneses. “Eu conheci meu ex-marido em Rondônia, quando fui visitar um irmão. Nos casamos e tivemos três anos e meio de um relacionamento maravilhoso”, relata.