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Cuiabá, 22 de Maio de 2025
22 de Maio de 2025

22 de Maio de 2025, 14h:08 - A | A

OPINIÃO / CHRISTIANY FONSECA

Cuidamos de Bonecos, Ignoramos Pessoas: A Sociedade do Afeto Artificial

O conforto de cuidar de quem nunca vai decepcionar, mas também nunca vai amar.

CHRISTIANY FONSECA



Elas dormem em carrinhos, ganham nome, certidão de nascimento, roupinhas lavadas com amaciante. São embaladas com uma delicadeza que, muitas vezes, falta aos bebês reais. Não choram. Não incomodam. Não rejeitam. Os bebês reborn, réplicas hiper-realistas de recém-nascidos, tornaram-se um fenômeno mundial. Estão nas casas, nas redes sociais, nos shoppings, nas reportagens. Mas o que essa febre silenciosa está tentando nos dizer?

Talvez escancare, sem pudor, aquilo que o título já denuncia: desaprendemos a amar quem sente, quem falha, quem nos desafia e escolhemos derramar afeto apenas sobre aquilo que podemos manipular, calar e controlar. A sociedade do afeto artificial não quer laços reais, quer relações obedientes, sem riscos, sem dor e sem vida.

A princípio, parece inofensivo, um hobby, uma forma de arte, um consolo para mulheres que perderam filhos ou não puderam tê-los. E de fato foi assim que os primeiros bebês reborn surgiram nos anos de 1990, como peças artesanais destinadas a colecionadores ou a um uso terapêutico em casos específicos de luto. O que é novo hoje não é o boneco em si, mas o tipo de relação que se estabelece com ele. O reborn deixou de ser apenas um objeto simbólico para se tornar protagonista de vínculos cotidianos.
Cuidamos de bonecos como quem encontra alívio diante do fracasso dos vínculos humanos. Em vez de enfrentarmos o desafio da alteridade, preferimos a conveniência do afeto artificial, onde não há imprevistos, nem dor, nem a necessidade de escutar o outro.

Vivemos tempos líquidos, tempos em que, como alerta o sociólogo Zygmunt Bauman, “nada é feito para durar”. As relações escorrem pelos dedos ao menor sinal de problema. Fugimos de vínculos que exijam esforço, confronto ou risco. E é justamente aí que o bebê reborn se encaixa: previsível, silencioso, totalmente sob nosso controle. Ele não exige, não desafia, não abandona. Enquanto isso, pessoas reais com suas imperfeições, desejos e carências são deixadas para trás, ignoradas e invisibilizadas.

O paradoxo se intensifica, enquanto investimos tempo, dinheiro e afeto em um boneco, seguimos incapazes de oferecer o mínimo de atenção a pessoas reais. O paradoxo se intensifica: cuidamos com esmero de bonecos, mas muitas vezes cruzamos a rua para não encarar um morador em situação de rua, desviamos o olhar de uma criança que pede ajuda no semáforo e nem percebemos que, muitas vezes, aquela mão pequena estendida não pede apenas moedas, mas atenção, reconhecimento, um olhar que diga: “eu te vejo”.

Recusamos o incômodo de quem demanda nossa escuta ou nossa presença real: é o idoso que tenta puxar conversa na fila do mercado e é ignorado; é a amiga que liga só para desabafar, mas deixamos no “não atender” porque não queremos lidar com o peso da dor do outro; é o colega de trabalho que passa dias calado, sobrecarregado, isolado, e ninguém percebe ou pergunta se está tudo bem. Preferimos a previsibilidade de um boneco mudo, que não nos interpela, não nos exige e não nos desestabiliza.

Não por acaso, a cultura emocional do capitalismo, como analisa a socióloga Eva Illouz, transforma até mesmo as experiências mais íntimas em mercadoria. Bebês reborn são vendidos por preços que rivalizam com tratamentos terapêuticos reais porque prometem algo que nenhuma relação humana pode garantir: a ausência total de frustração. Compramos companhia, consolo e o direito de não sermos deixados.

E nessa lógica perversa, o boneco passa a ser preferido à pessoa real. Afinal, a sociedade do afeto artificial não quer a imprevisibilidade dos sentimentos humanos, mas a docilidade das coisas que compramos e descartamos quando quisermos.

Anthony Giddens fala do “relacionamento puro”, laços que só se mantêm enquanto houver satisfação mútua. Mas o que isso significa num tempo em que a frustração virou sinônimo de abandono? Com o bebê reborn, não há reciprocidade possível: ele não sente, não reage, não confronta. É uma via de mão única, onde o afeto é depositado, mas nunca retornado. E, ainda assim, seguimos chamando isso de companhia.

Esse “relacionamento” com o boneco leva ao extremo a lógica da nossa época: vínculos unilaterais, sem negociação, sem conflito, sem reciprocidade. Cuidamos de bonecos, ignoramos pessoas, porque as pessoas falham, irritam, decepcionam. O boneco, não.

O reborn é, portanto, um espelho cruel das nossas escolhas: preferimos o conforto do afeto inanimado à complexidade do encontro humano. Enquanto dedicamos cuidado e atenção quase obsessivos a esses corpos de vinil, deixamos de olhar para o lado, para os seres humanos reais, imprevisíveis, cheios de falhas, mas vivos e precisando de nós.

Essa é a sociedade do afeto artificial: um espaço onde o outro é cada vez mais substituído pela coisa, pela performance, pela encenação de vínculo e onde o cuidado se desloca do humano para o objeto.

Não é coincidência que essa busca por vínculos sem dor se torne tão popular num mundo onde os laços sociais estão cada vez mais frágeis e o encontro real, com seus desafios e contradições, é evitado a todo custo. Em vez de enfrentarmos a crise das relações humanas, criamos simulações que oferecem conforto e controle, mas jamais reciprocidade. Preferimos o silêncio submisso do vinil ao barulho caótico do humano.

Será esse o preço que estamos dispostos a pagar pela nossa segurança emocional?

Talvez, no silêncio confortável dessas relações inertes, estejamos apenas adiando o inevitável: perceber que, sem o outro, sem o risco e a dor que ele implica, o afeto perde sua potência, e nós, lentamente, perdemos nossa própria humanidade.

Christiany Fonseca é Professora do IFMT e Doutora em Sociologia

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