WILSON CARLOS FUÁH
Para quem vinha do Sul do país em direção a Cuiabá, por estrada de chão batido ou asfalto novo, a porta de entrada era sempre a mesma: a Avenida Coronel Escolástico. Ela começa na Igreja São Judas Tadeu e seguia até a tradicional Igreja do Rosário, carregando consigo uma história viva da cidade de Cuiabá.
No coração dessa avenida está erguido um monumento simbólico: o pedestal com as figuras do Bandeirante, do Índio e do Negro — pilares da formação histórica e cultural do povo cuiabano. Ao lado da Igreja São Judas, repousa também a primeira casa da avenida, construída pelo Sr. Luiz Soares da Silva, comprador de gado, que ali viveu por muitos anos. Mas o verdadeiro casarão da família Soares ficava mais adiante, no entroncamento com a Avenida João Gomes Sobrinho e a Travessa das Laranjeiras, pertencente ao lendário "Pai Juca" — José Soares da Silva Sobrinho — filho adotivo do usineiro Manoel Pinto Guimarães, homem poderoso, dono de engenho e de escravos, lá pelos idos de 1790.
A família Soares da Silva deixou raízes profundas na Av. Coronel Escolástico. Eram tantos os parentes espalhados por toda a extensão da avenida, que por muito tempo aquele trecho era conhecido como "Rua dos Soares" ou "Rua do Areão" que depois foi passou a ter o nome de Av. Coronel Escolástico.
Na Avenida também havia seus tipos inesquecíveis — personagens folclóricos, muitos considerados “loucos do bem”. Como esquecer o “Macaco de Bota”, o “Pau de Fumo”, o “Zé Belinho”, o “João Mamoré” e o temido “Olho de Bala”? Eram figuras que, ao serem provocadas pelas crianças com seus apelidos, saíam correndo atrás delas, às vezes até jogando pedras. Parecia briga, mas era diversão. Uma farra inocente das crianças daquela Rua do Arão, que virou saudade.
Outro marco da época era o famoso Serviço de Alto-Falante - A Voz do Areão”, comandado pelo dentista Dr. Lauro. À noite, ele se transformava em locutor, e entre 1961 e 1965, colocando no ar as músicas da Jovem Guarda: Roberto Carlos, Renato e Seus Blue Caps, Leno e Lilian, Os Vips, The Fevers, Os Milionários e até os Beatles. Os namorados passeavam pelas calçadas, mãos dadas e corações em festa, ouvindo as canções vinda do Alto-Falante. Era também o tempo das declarações apaixonadas, muitas vezes anônimas, e dos recados de utilidade pública: falecimentos, batizados, convites de casamento...
Até hoje, quando fecho os olhos, ainda ouço as músicas que tocavam e vejo aquelas pessoas alegres, sorrindo, caminhando sem pressa e sem maldade no vaivém nas proximidades da casa que ficava o Alto-Falante. Como era bom viver naquela Cuiabá, onde se era feliz com tão pouco!
Foi ali, em 1970, que nasceu o “Clube Esportivo Novo Mato-Grosso”, presidido pelo Odontólogo Antônio Esmela Curvo, apaixonado por futebol e pela convivência comunitária. Com recursos próprios, alugou um casarão que virou a sede do clube. Lá havia mesas de truco espanhol, pingue-pongue, bailes, almoços com cabeça de boi assada, Maria Isabel, farofa de banana e sarapatel. Era um ponto de encontro para todos.
O time participou do Primeiro Torneio Início promovido pela Liga do Departamento Autônomo de Futebol Amador de Cuiabá — e saiu campeão! A comemoração varou a madrugada. Os troféus brilhavam na galeria da sala principal do clube. Entre os grandes nomes da equipe, lembro de goleiros como Gurizinho, Hebert e Lulu; zagueiros como João Torres, Ariel, Jamil, Bodinho, Osmar, Jair; os meias Fuá (sim, este que vos escreve), Zeca, Beninho, Dito Lobi, Toninho e Canhão; e no ataque: Edu, Ditão, Felizardo, Aurélio, Nhonhô Preto, Piauí e Alair Fernando. Que time!
Até hino e forma de samba o clube tinha:
“Se uso bebico no alto da cabeça
Dizem que sou malandro, mas não sou.
Sou amigo ganhador.
Se uso bebico assim, é por causa do calor...
Ôôô, o Novo Mato-Grosso chegou!”
(Bebico era aquele quepe ou boné de aba frontal, sinônimo de “malandragem” elegante da época.)
Logo ao lado da sede, funcionava o famoso “Bar do Biano”. Era o ponto da boemia cuiabana. Os frequentadores eram os mesmos do time e do samba, mas também políticos, poetas e personalidades de outros bairros. Um verdadeiro palco da vida noturna, com discursos improvisados e amizades eternas.
A juventude da Avenida também brilhava nas Escolas de Samba. Primeiro no “Deixa Cair”, depois na “Escola de Samba Pedroca”, da Cidade Verde, e por fim na “Mocidade Independente Universitária”. Falou em samba, lembro logo do inesquecível Alair Fernando, mestre dos instrumentos de percussão: agogô, tamborim, repenique, surdo, chocalho... Ele tocava todos. Era a alma do ritmo.
E como esquecer o Mestre Zequinha? Com seu apito de ouro, liderava a bateria com elegância e firmeza. Era o comandante de mais de cem batuqueiros. Ainda ouço o estrondo cadenciado daquelas batidas. No carnaval era uma sinfonia cuiabana.
Ah, saudades...
Saudades da Avenida Coronel Escolástico — onde se propagava a cultura comunitária, futebol e samba se misturavam com o cheiro da terra quente e a alma leve.
Foi ali que a família Soares fincou raízes. Foi ali que aprendi a ser cuiabano com orgulho.
Foi ali que vivi — e nunca esqueci.
*Wilson Carlos Fuáh – É Especialista em Recursos Humanos e pesquisador das Relações Sociais e Políticas, Graduado em Ciências Econômicas.