RUY CASTRO
FOLHA DE S. PAULO
De 1958 a 1965, Carlos Lyra, em parceria com Vinicius de Moraes, Ronaldo Bôscoli e poucos mais, produziu maravilhas como "Primavera", "Minha Namorada", "Marcha da Quarta-Feira de Cinzas", "Coisa Mais Linda", "Canção que Morre no Ar", "Lobo Bobo", "Saudade Fez um Samba", "Se é Tarde me Perdoa", "Feio Não é Bonito", "Samba do Carioca", "Samba da Legalidade", "Aruanda", "Quem Quiser Encontrar o Amor", "Influência do Jazz", "Sabe Você", "Você e Eu", "Maria Ninguém", "Maria Moita" e muitas mais —gravadas por João Gilberto, Nara Leão, Sylvia Telles, Astrud Gilberto, Elis Regina, Billy Eckstine, Brigitte Bardot e incontáveis grupos instrumentais. Dele, disse Tom Jobim: "Carlinhos é o maior melodista da bossa nova".
Se Tom falou, estava falado —embora, para o resto do mundo, o maior melodista da bossa nova fosse o próprio Tom, com Carlinhos pagando um honroso placê. Seja como for, esse corpo de canções, produzido em tão pouco tempo, foi suficiente para sustentar Carlos Lyra pelos 50 anos seguintes —período em que, por vários motivos, sua produção não se comparou à dos tempos heróicos da bossa nova. O que fez com que seu mais antigo parceiro (e cordial desafeto) Ronaldo Bôscoli o definisse: "Carlinhos Lyra é o contrário do vinho. Quanto mais moço, melhor".
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Bôscoli sabia o que dizia. Os dois juntos, e mais uma plêiade de garotos por volta dos 20 anos, compunham uma turma que, naquela época, passava as noites no apartamento da quase adolescente Nara Leão, na avenida Atlântica, em Copacabana, para tocar violão, trocar acordes, cantar suas composições, rir muito e filar o uísque do dono da casa, pai de Nara. No futuro, dir-se-ia que a bossa nova nascera no apartamento de Nara. Mas Carlinhos, que vinha da pré-história do novo ritmo, sempre negou que tivesse sido assim. E acrescentava: "Nem a Nara nasceu no apartamento da Nara".
Embora tenha sido um dos criadores do movimento, Lyra foi quem mais procurou discuti-lo —o que, às vezes, resvalou em posições contraditórias. Exemplos? Cerca de 1961, por motivos ideológicos —pertencia ao Partido Comunista e atuava no CPC (Centro Popular de Cultura)—, afastou-se de Jobim, Bôscoli e outros que considerava de "direita" e chegou a propor um novo nome, "sambalanço", para sua música. O nome não pegou e ele voltou à denominação original. Em 1962, insurgiu-se também contra o que considerava um excesso de influência do jazz na bossa nova, principalmente a praticada no Beco das Garrafas —donde o seu samba-manifesto, "Influência do Jazz". Mas, já em 1963, gravou um disco, "The sound of Ipanema", com o saxofonista americano Paul Winter e, em 1964, viajou pelos EUA com o principal jazzista da bossa nova, o também saxofonista Stan Getz. E foi também talvez o único a praticar explicitamente uma variedade rítmica dentro da bossa nova —sua obra é composta de boleros ("Maria Ninguém"), marchas-rancho ("Marcha de Quarta-Feira de Cinzas") e sambas-canções ("Minha namorada"). Naturalmente que, vindo de quem vinha, era tudo "bossa nova".