EDUARDO MAHON
O Poder Judiciário Mato-grossense alvejou a advocacia. A turma recursal dos juizados especiais abriu perigoso precedente contra as prerrogativas dos advogados: em apelação criminal, manteve uma condenação por desacato. Trata-se de um atestado de falência do sistema judiciário. O causídico solicitou por duas vezes uma certidão – obrigação do serventuário – e não obteve sucesso. Inconformado, cobrou a gestora de forma contundente, denunciando a crise na comarca de Guarantã do Norte. A contundência é tomada como grosseria e, por consequência, viu-se o advogado processado e condenado por desacato.
O precedente aberto é o de moderação do tom do advogado, o que é um absurdo. Como se sabe, a profissão é afeta às liberdades civis, resguardadas por uma série de prerrogativas, porquanto substitui em juízo o interesse das partes. Assim, escalonando subjetivamente o tom do debate, classificando como desacato a denúncia da qual o advogado pode e deve fazer, o Poder Judiciário Mato-grossense presta um enorme desfavor à sociedade. Tudo o que a advocacia não precisa – e não merece – é ser pautada pela régua judicial. Não é o juiz de direito quem mensura se a crítica obedece ou não a critérios de lhaneza, mormente quando haja a confissão de má gestão por falta de pessoal e o descumprimento reiterado de obrigação legal, qual seja, expedição de certidões.
O colega elevou o tom. E daí? Dizer que a falta de prestação jurisdicional é um absurdo é direito do cidadão e, com maior razão, do advogado que representa a sociedade em juízo. O colega não proferiu palavras de baixo calão, ofendendo a honra da servidora em questão e nem tampouco desprestigiou o Poder Judiciário em suas críticas. Comprovou uma crise sistêmica que é conhecida por quem milita e se exaspera diariamente nos balcões judiciários do Estado de Mato Grosso. Há gargalos insuportáveis na 1ª instância que penaliza milhares de advogados públicos e particulares e seus clientes que, por sua vez, são clientes da prestação judicante. E como somos maltratados! Obrigados a esperar mais do que os prazos legais, a suportar remarcações de audiência, a engolir a burocracia que inviabiliza nossa carreira, somos vilipendiados e, nem por isso, acusamos esse sistema de nos desacatar, de nos menosprezar, de nos ofender.
A condenação sofrida pelo advogado Rubem Mauro Vandoni condena também todos os advogados mato-grossenses. Admoesta-nos a uma mansidão controlada, a um servilismo diante da inércia. Senti-me condenado por ele, porque sei que o tom das minhas críticas poderá ser regulado e, eventualmente, censurado por meio de uma ação penal, ainda que tenha razão em exigir os meus direitos como advogado, sobretudo na expedição de uma simples certidão. Fiquei perplexo com a justificativa do relator do recurso de apelação: “há uma linha tênue entre a exigência do direito e o excesso”. Noutros tempos, mais arejados e democráticos, o reconhecimento dessa linha tênue seria, por si só, mais do que suficiente para impor-se a absolvição, uma vez que não é atribuição do juiz medir subjetivamente o que seria ou não excessivo, no exercício da advocacia.
O grande escritor Émile Zola, em artigo publicado na imprensa francesa, em 13 de janeiro de 1898, acusou o gritante erro judiciário no caso do julgamento do capitão Alfred Dreyfus. Pela coragem, o J’accuse entrou para o rol dos célebres discursos pela liberdade civil, contra julgamentos tendenciosos. Teve a combatividade necessária para se dirigir ao executivo e acusar o sistema judiciário francês, inclinado para o corporativismo, antissemitismo e nacionalismo revanchista, sem receio de retaliações. Lembramos de Zola para também acusar esse grotesco equívoco realizado pelo Poder Judiciário de Mato Grosso: condenar um advogado que exige, que insiste, que se rebela contra a falta de direito. Certamente, o peso dessa condenação recairá em toda a classe que ficará temerosa de elevar a voz, de protestar, de firmemente pleitear por seus direitos, em igualdade de condições com um juiz de direito ou promotor de justiça.
Do episódio, quem ficou diminuído não foi a servidora, suposta vítima, cujas dores foram tomadas por juízes. Quem está apequenada é a advocacia, sob a censura judicial do que é conveniente ou inconveniente, educado ou deselegante, cabível ou incabível falar ou fazer. Até porque, além de ser obrigação do judiciário a presteza, paga-se taxas das mais altas do país para ser atendido e bem atendido. O advogado não será domesticado por qualquer condenação que pretenda limitar o direito de exigir o que deve o Poder Judiciário realizar de forma imediata. Nenhuma autoridade pública tem o condão de modular a ênfase das críticas, se cabíveis. Ou será que este artigo renderá um processo por falar o que deve ser dito? De qualquer forma, eu também acuso: mon devoir est de parler, je ne veux pas être complice. Mes nuits seraient hantées par le spectre de l'innocent qui expie là-bas, dans la plus affreuse des tortures, un crime qu'il n'a pas commis. Nada mais adequado.
EDUARDO MAHON é advogado.