Com o advento da Operação Lava Jato é possível afirmar – e reconhecer no dia a dia; que o Brasil ultrapassa uma fase de grandes mudanças que podem ser percebidas em várias searas que vão desde o crescente número de manifestações até a participação de crianças e o envolvimento dos próprios adultos na discussão sobre a política.
Sem embargo, vale pontuar que há muito os brasileiros apenas vestiam a camisa de cidadão no dia das eleições para exercer o direito de voto, deixando qualquer formação cívica de lado já que após uma semana das eleições em um país em que o voto é obrigatório, como no Brasil, os cidadãos sequer se lembram dos candidatos a que destinaram seus votos. Viva aos anos de política do pão e circo!
Acontece que diante do quadro de tanta corrupção que assola a sociedade brasileira o inconformismo dominou o sentimento da população e a comoção popular começa a (re) construir uma consciência crítica nos brasileiros.
Não há como negar que tais mudanças significam tão somente o início de um longo caminho a percorrer, mas também não é justo que elas passem despercebidas sem o reconhecimento da sua devida importância para o desenvolvimento do País.
E nesse contexto, o Brasil, que outrora se preocupou com o excesso de termos técnicos utilizados pelos profissionais do Direito em face da necessidade de compreensão por todos os envolvidos em um processo, hoje, encontra na boca do povo as expressões que representam institutos complexos do universo jurídico, como foros privilegiados, delações premiadas, crimes de lavagem de dinheiro, uso de informações privilegiadas – insider trading,1 etc.
Dentre eles, encontra-se o acordo de leniência já utilizado na citada Operação Lava Jato pelas empreiteiras Odebrecht e UTC Engenharia, situações em que foram acordadas reparações de danos e multas que devolverão aos cofres públicos bilhões de reais.
O acordo de leniência é um benefício previsto pela Lei nº 12.529/11, também denominada lei antitruste – que estrutura o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica; e que consiste em um acordo celebrado entre Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, por intermédio da Superintendência-Geral, e pessoas físicas ou jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica.
Por partes. O CADE é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Justiça que tem como missão zelar pela livre concorrência no mercado, sendo a entidade responsável, no âmbito do Poder Executivo, não só por investigar e decidir, em última instância, sobre a matéria concorrencial, como também fomentar e disseminar a cultura da livre concorrência.2
Basta lembrar-se da compra da Garoto pela Nestlé. Compra essa que se arrasta desde 2002 e ao que tudo indica teve seu fim em setembro deste ano. Sim, sob o controle e a fiscalização do CADE, a Nestlé tem até outubro de 2017 para se desfazer de
1 DUDA, Amanda Fumes. A criminalização da conduta do Insider Trading e a proteção do mercado de valores – disponível na rede mundial de computadores.
Algumas marcas como Lollo e Chokito, sob pena de, se não o fizer, infringir as regras de concorrência no mercado.
Por sua vez, as infrações à ordem econômica são condutas expressamente previstas pela Lei Antitruste que, independentemente de culpa, tenham por objeto ou possam produzir efeitos a partir da limitação ou prejuízo da livre concorrência ou da livre iniciativa, do aumento arbitrário de lucros ou da dominação do mercado de bens ou serviços.
A referida lei, ainda, elenca outras condutas como a limitação de acesso de novas empresas ao mercado, a manipulação de preços, condições, vantagens ou abstenções em licitação pública, a divisão de partes ou segmentos de um mercado, dentre outras que visem afrontar à ordem econômica, cujas penas vão desde a multa, a desconsideração da personalidade jurídica para fins de responsabilização, até a cisão de sociedade, a transferência de controle societário e a proibição de exercer o comércio.
Ocorre que diante da dificuldade, muitas vezes encontrada pelas autoridades, de obtenção de provas devido à sagacidade, à ardileza utilizada pelos infratores do mais alto escalão que se envolvem neste tipo de infração, o legislador criou o acordo de leniência.
No âmbito do CADE foi desenvolvido o Programa de Leniência, instrumento utilizado desde 2003 para o combate de cartéis no Brasil e no mundo e, desde então, foram assinados mais de 50 acordos.3
Para que seja válido o acordo de leniência, ele deve respeitar os parâmetros delineados pela Lei Antitruste, razão pela qual deve ser firmado com a pessoa infratora que colabore efetivamente com as investigações ou processo, resultando na identificação dos demais envolvidos, na obtenção de informações e documentos que comprovem a infração, sendo que o beneficiário deve confessar e assumir o compromisso de cessar sua participação na prática infratora.
Entretanto, dois requisitos são expressos na Lei em comento e merecem maior destaque, quais sejam, a pessoa deve ser a primeira a se qualificar com respeito à infração investigada ou processada, assim como, a autoridade responsável – a Superintendência-Geral; não deve dispor de provas suficientes para assegurar a condenação.
A propósito, cabe ressaltar que tais requisitos estão expressos, de igual forma, na Lei Anticorrupção – Lei n 12.846/13, que atribui à autoridade máxima de cada órgão ou entidade pública, bem como à Controladoria-Geral da União – CGU, no âmbito do Poder Executivo federal, a competência para celebrar o acordo de leniência.
Ocorre que é de conhecimento de todos, por exemplo, que na condução da Operação Lava Jato, já foram celebrados, pelo menos, 16 acordos, considerando o âmbito do Ministério Público Federal e do CADE conjuntamente. E aí os brasileiros questionam: se os requisitos são tão restritos, como podem existir tantos acordos?
Não há que se olvidar que os acordos de leniência, se comprovadamente cumpridos, resultam na isenção de pena de alguns ilícitos, bem como na redução da pena respectiva, sem prejuízo da reparação dos danos causados no intuito de que um bem maior seja alcançado.
Nesse contexto, em um País cuja população cada vez mais expressa a descrença na seriedade e no comprometimento das instituições públicas e, principalmente, nas leis que deveriam manter o senso de ordem e pacificação social, diante das notícias que se espalham cotidianamente torna-se difícil revigorar, dia a dia, a fé de que tudo vai melhorar.
Isso porque, o que ressurge é o sentimento de que no final todos os infratores serão beneficiados, independentemente de responsabilidade pelos seus próprios atos, enquanto os brasileiros que verdadeiramente representam sua nação acabam por pagar o preço da conta.
Evidente que trata de um problema muito mais profundo que envolve aspectos sociais, políticos e econômicos que ensejam a atuação de profissionais capacitados para identificar e auxiliar na elaboração de políticas públicas viáveis, que atendam a real necessidade do Estado Brasileiro.
De fato, não se pode explicar com certeza o porquê da utilização desenfreada de institutos como o acordo de leniência que – correndo o risco de transmutarem-se em verdadeiro direito negocial; ainda diante da atrocidade cometida pelos infratores, resultará em benefícios a serem gozados por eles.
Contudo, também não se pode desconsiderar que as instituições públicas estão envolvidas e comprometidas em aplicar as leis de uma forma que o Brasil jamais presenciou, vide a proporção das investigações das Operações deflagradas ultimamente.
Assim sendo, certamente só se pode errar quando se tenta acertar, razão pela qual, ao invés de abandonar o barco, vale se apegar nos aspectos positivos da situação e ainda que o Brasil não tenha alcançado sua excelência, as mudanças são perceptíveis e denotam o início da tomada de rumo pelo País.
Afinal, o acordo de leniência é um instituto previsto em lei que é utilizado para auxiliar a condução de investigações e processos quando as autoridades podem conceder um benefício ao colaborador no intuito de garantir a responsabilização de um mal muito maior. Mais que isso, o acordo de leniência, hoje, representa mudança, seja na busca das instituições pela efetivação da ordem pública em proporções jamais vistas, seja na (re) construção da consciência crítica dos brasileiros que, sem dúvidas, resultará no desenvolvimento do País. Avante Brasil!
Amanda Fumes Duda é advogada associada ao escritório Oliveira Castro Advogados, pós-graduada em Direito Constitucional aplicado pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus, com curso de extensão em Internacionalização do Direito pela Universidade Católica Portuguesa – Porto/PT e Administração Judicial pelo Turnaround Management Association.















