CHRISTIANY FONSECA
A polarização política no Brasil e no mundo não é apenas uma crise democrática, ela se tornou uma patologia social, marcada pela incapacidade de reconhecer a dor alheia se ela vier do “lado errado”.
Os assassinatos de Charlie Kirk, nos Estados Unidos, e de Marielle Franco, no Brasil, escancaram esse adoecimento coletivo. Ambos foram mortos. Ambos eram figuras públicas. Ambos deveriam ter gerado repulsa unânime. Mas não geraram. A empatia foi racionada por lealdade ideológica. A dor passou a ser negociada por alinhamento.
Charlie Kirk, ativista político conservador e cofundador da Turning Point USA, foi assassinado a tiros durante um evento universitário. A reação? Silêncio entre setores progressistas, relativização e até manifestações de comemoração explícita, como a do neurocirurgião Ricardo Barbosa, que publicou em suas redes sociais: “Um salve a este companheiro de mira impecável. Coluna cervical.”
Já Marielle Franco, vereadora negra, favelada e defensora dos direitos humanos, foi executada com tiros na cabeça no centro do Rio de Janeiro. A reação conservadora incluiu teorias conspiratórias, ataques à sua biografia e tentativas explícitas de apagar seu legado. Como afirmou o deputado Nikolas Ferreira: “A Marielle não era essa flor que se cheire. Não é porque morreu que virou santa.”
Nos dois casos, a dor foi tratada como se tivesse partido político. É a falência do princípio moral mais básico: o reconhecimento da dignidade humana. A indignação se tornou seletiva. Se a vítima for do meu lado, me revolto. Se for do outro, relativizo. A empatia virou trincheira, e o luto se transformou em instrumento de fidelidade ao grupo.
A polarização, assim, não distorce apenas os argumentos, ela compromete o próprio julgamento ético. Como mostra a cientista política Lilliana Mason, a lealdade ao grupo político transforma o adversário em alguém moralmente inferior, até desumanizado. Já não se debate ideias: se combate o outro como se ele fosse uma ameaça existencial.
Jonathan Haidt, psicólogo social, chama isso de tribalismo moral. A moralidade humana, segundo ele, não evoluiu para buscar justiça, mas para proteger o grupo e atacar o adversário. O efeito do tribalismo moral é devastador: a vida e a morte do outro só importam se ele for do meu lado. A noção de certo e errado não depende mais dos fatos ou da justiça, mas de quem está envolvido.
Nesse ambiente, os valores universais cedem lugar a cálculos identitários. O sofrimento deixa de ser humano para se tornar político. A empatia desaparece, substituída por sarcasmo.
É ingênuo, ou perigosamente limitado, quem acredita que estamos falando apenas de esquerda e direita. Quem comemora uma execução por conveniência ideológica não está defendendo um projeto político: está abrindo mão da própria humanidade.
Quando relativizamos o assassinato de alguém com base em suas ideias, sinalizamos o colapso da ética mais elementar. Trata-se de reconhecer que há algo profundamente doente numa sociedade que normaliza ou até ridiculariza a morte quando ela atinge o “outro”. Quando a brutalidade deixa de causar comoção universal e passa a provocar torcida, a decadência não é apenas política, é moral.
É nessa lógica que o luto se transforma em trincheira e o silêncio se torna uma forma de validação.
O assassinato de Charlie Kirk não pode ser comemorado. A execução de Marielle Franco não pode ser relativizada. Mas ambos foram tratados assim. E isso diz mais sobre nós, como sociedade, do que sobre as próprias vítimas.
A verdadeira decadência não está nos crimes em si, mas na forma como os normalizamos ou instrumentalizamos a dor alheia para defender posições políticas. Esse é o sintoma mais evidente de que a polarização se tornou patologia.
Enquanto a empatia continuar sendo condicionada à ideologia da vítima, estaremos todos mergulhados na mesma doença moral: a incapacidade de reconhecer o humano no outro.
E quando isso acontece, não é a política que fracassa. É a civilização.
Christiany Fonseca é Cientista Política, Doutora em Sociologia e Professora do IFMT.
Wilma Comim 17/09/2025
Verdade absoluta.
1 comentários